14/11/2008

vaca-kombi

estava indo para o colégio, levando meu filho, que tem cinco anos. distraído, dirigindo e sintonizando o programa raízes do brasil, de música caipira. ouvimos todo dia para chegar na escola. no meio da estrada ele me solta: -ola papai, uma vaca-kombi! olho para o lado vejo uma komboza dessas todas estropiadas. a dita era branca e toda manchada de massa. parecia uma vaca holandesa.

24/09/2008

o estudo da casa

nesta última época, estudamos a casa. vimos como o homem observou os animais para fazer sua casa, como as diferentes culturas constróem sua habitações e como são as partes da casa, a casa vista de cima, a planta baixa etc. tem sido bastante rico e as crianças gostam muito de ver as diferenças entre os castelos e as palafitas, as ocas e os iglus, as tendas do deserto e as cavernas. a cada tipo de moradia uma nova descoberta é feita e abre-se uma possibilidade para a casa que eles mesmos irão construir como maquete.

corrigindo os cadernos, não pude deixar de dar umas risadas com algumas frases malucas que apareceram, fruto de um pouco de distração de alguns alunos. algumas ganham um sentido dramático com a troca de apenas uma letra. poesia pura. seguem as frases malucas e ficam os desafios de tentar descobrir qual era o texto original que coloquei no quadro negro, que na nossa escola ainda é negro.

"O homem caía em busca de alimento, enquanto a mulher cuidava do fogo e das crianças."

"As palafitas são contrições feitas em lugares que têm muita água."

"As casas indignas são tão variadas quanto as tribos."

"Na maioria das fezes, os castelos são construídos em locais altos."

samambaia do matutu

17/08/2008

estimação

estávamos falando sobre animais outro dia. era um dia triste pois o titico, porquinho da índia, havia morrido durante as férias. além de bichos estávamos falando sobre a morte. o dono do titico tinha ido dormir e no dia seguinte não pode mais encontrá-lo. chamava, chamava e nada de ele vir, como de costume. depois de uns dias, o forte cheiro tomou conta da cozinha e a faxineira percebeu o corpo estendido no chão, debaixo da geladeira. funeral em caixa de sapato com direito a cova no jardim foram as últimas exéquias ao querido titico. não deixou filhos, deixou saudades.

enquanto a tristeza de um tomava conta do grupo, alguém teve a idéia de mudar de assunto (mas não muito) e começaram a falar sobre os outro animais de estimação que havia na classe. os tradicionais cachorro e gato têm uma fiel audiência, mas também há crianças que têm cabras, galinhas, patos, peixes e cachorros descomunais como o chico e o binu.

no meio daquele bicharada vira uma criança e pensativa dispara:

-professor, eu não tenho bicho de estimação. pára, pensa mais um pouco e completa:

-só aqueles mosquitinhos do banheiro.

03/08/2008

rezar

sempre rezei antes de dormir. das mais longínquas memórias que consigo resgatar, sempre está presente o ato solene de rezar antes de dormir. bem pequeno, minha mãe falava e eu repetia até que acabei decorando o pai nosso e a ave maria. um de cada antes de dormir, era assim que eu pegava no sono. demorou até eu perceber que não se rezava: "pai nosso, cristais no céu..." .

mas que era bem mais lindo isso era.

02/08/2008

homero

Sempre achei estranha aquela intensa fascinação das crianças do lugar onde moro por Homero. Não importa se chegam cansadas da escola, ou se estão no meio de uma brincadeira. A qualquer hora, páram o que estão fazendo e se lembram dele. Estejam no balanço, andando de skate na pequena ladeira ou jogando bola. Não há idade para gostar de Homero, sejam os mais velhos, sejam os mais novos que ainda têm as mães por perto, Homero é sempre uma presença em suas vidas, no lugar onde moro.
Meu pequeno filho, de dois anos, costuma brincar com as crianças no parquinho. É um pouco cedo para dizer se ele gosta ou não de Homero, mas com certeza ele já ouviu falar de seu nome e sabe de sua fama pela redondeza. Não há criança do bairro que não o conheça e tenha vívidas lembranças do velhinho.
Homero é um senhor de cabelos brancos, que mora no bloco 54 apartamento 13 terceiro andar. A janela de seu quarto fica bem em cima do parquinho. Ele joga balas pela janela de seu quarto para as crianças que brincam lá embaixo.

-Homero, joga um Bis!

O único problema é que ele cisma em fazer truques com o cigarro para os pequenos. Como enfiar o cigarro aceso na orelha. Ou na boca com a brasa para dentro. Por vezes os assusta empurrando a dentadura para fora com a língua.

-Homero, mostra a dentadura! gritam os maiores, quando ele desce.

21/07/2008

desajudei...

Ele brincava com seus cinco anos no quintal quando percebeu uma folha se mexendo no gramado. Ficou intrigado, parou o que estava fazendo e chegou mais perto. Era uma formiga cortadeira, vermelha, que carregava nas costas uma folha muito maior que seu tamanho. É do pingo de ouro que cresce ao lado, margeando o muro do vizinho, olhou. Mais perto ainda, quase encostando o rosto na grama, ele se compadeceu do esforço sobrenatural que o pequeno inseto fazia. Assoprou, imaginando um veleiro que deslizaria pelo tapete de grama verde. A folha se soltou da formiga, que mudou seu caminho,  voltando para pegar outra folha. M. ainda tentou colocar a folha nas costas da formiga mas ela relutou, como que fazendo birra e não pegou a folha. M. se levantou e  tristonhou:

-Eu fui tentar ajudar ela e acabei desajudando...

E voltou a brincar com seus cinco anos.

23/06/2008

roqueiro...

estou trabalhando com os alunos em uma época de profissões. começamos em grande estilo, estudando o ferreiro. tivemos a chance de visitar uma ferraria e cada aluno fez um espeto de churrasco, onde assou uma salsicha. o ferreiro é alemão e fala com tanto sotaque que poucas crianças entendem o que ele fala. o que em certos aspectos é até bom. afinal de contas fomos lá não para ficar ouvindo ele falar, e ele não falou tanto assim, mas para ver suas ferramentas e a atmosfera da coisa.

incrível foi a hora que ele acendeu o fogo. ohs e caras de espanto total. melhor ainda quando ele mergulhou uma barra de ferro incandescente no óleo queimado e ela ficou flamejando. inesquecível. depois de fazer três ferramentas e as crianças olharem sentadas (milagre da natureza) o ferreiro pegou uma por uma e fez um espeto de churrasco junto com eles. um por um, ele esquentou o ferro no fogo, martelou na bigorna e entortou o ferro até ele virar um espeto de churrasco. feito o espeto, cada um entrava na fila da salsicha, organizada pela mulher do ferreiro, espetava sua salsicha e assava seu churrasco.

depois, cantamos duas músicas para agradecê-lo e voltamos para o colégio.

mesmo sem o glamour da visita ao ferreiro, continuamos estudando as profissões: os transportadores, o padeiro, o pedreiro e todos os construtores e finalmente as profissões que nos vestem, que nos protegem deste frio danado.

começamos pela roupa em si. só que antes da roupa estar feita, alguém a fez, o alfaiate e as costureiras com máquina, agulha, linha, tesoura e todas suas ferramentas. antes deles, veio o tecelão, que teceu os tecidos com o tear. antes dele alguém fiou com a roca e o fuso, a fiandeira. antes dela, alguém plantou o algodão, o linho ou cuidou do bicho da seda ou dos carneiros.

em cada etapa do processo de produção falei de cada profissão e de suas ferramentas. foi rico.

na hora da cópia, um aluno me pergunta:

-como é mesmo o nome daquela pessoa que trabalha com a roca?

-roqueira, responde o engraçadinho de plantão. e caimos todos na risada.

11/06/2008

lição de casa

lição de casa do terceiro ano

segundo exercício: escreva uma frase com a palavra "enxada" e outra frase com a palavra "pá".
resposta: eu trabalhei com a pá. eu vi um pássarinho.

09/06/2008

saudades

um aluno interrompe a sua cópia, dá um breve suspiro, olha para cima, como se resgatasse algo do passado mais longínquo. parado, me olha com ternura. -professor, eu estou com saudades do lucas do segundo ano, nós brincávamos tanto... minha vez de suspirar. - a gente era tão amigo... suspiro de novo. - a gente até levava as mesmas cadernetas... saudades...

18/05/2008

mula sem cabeça

depois de falar sobre alguns personagens mitológicos do brasil, como o lobisomem, curupira, saci e outros, falamos um pouco sobre a mula sem cabeça. e vem um aluno e me pergunta como era o chifre da mula sem cabeça. peraí, a mula não tem chifre, muito menos a mula sem cabeça. e a classe cai na gargalhada.

17/05/2008

eu me demito

anteontem eu estava subindo para a sala dos professores quando me deparei com uma aluna de nove anos sentada em uma cadeira olhando para a parede, no canto. cheguei perto, ela me olhou e disparou:"eu me demito desta escola".

trabalho?

a classe quieta, todos alunos trabalhando, cada um fazendo seu desenho, uma criança me pergunta, em voz alta: professor, você trabalha?

pizza

classe de primeiro ano do ensino fundamental de uma escola waldorf. no fim do dia, todas crianças já cansadinhas ouvindo uma história, um conto de fadas. aquele clima de magia na classe, fora o calor infernal de fevereiro. eu me desdobrando para contar a história do príncipe que não tinha medo em seu coração e uma criança percebe: "professor, tem uma rodela de suor debaixo do seu braço".

paulo maluf

estou desenhando na lousa, cada criança concentrada em seu caderno fazendo seu desenho. silêncio lindo dentro da classe, daqueles que todo professor gosta. ouço baixinho um aluno saboreando o som das explosivas e fricativas: "paulo maluf". começo a dar uma gargalhada e a classe me pergunta o que foi. não foi nada, digo. e tudo volta ao normal.

o nome do homem

desde os tempos imemoriais do primário, quando ele ainda era primário, não era fundamental, havia um senhor em frente ao meu colégio que vendia balas e sorvetes. desde sempre ele estava ali, com seu carrinho da yopa, quando ainda havia yopa. todos os dias comprávamos besteiras para ruminar nas aulas e tenho certeza de que nunca niguém o chamou pelo nome. poucos ali sequer davam bom dia. resistiu ao escândalo da van mele, que colocava cocaína nos babaloos, resistiu às ameaças de bomba na escola por duas vezes e resistiu à demolição do prédio do colégio. certos de que a demolição do colégio, para dar lugar a um prédio de luxo, faria com que se esquecesse o nome do tio do sorvete, nunca ninguém se importou realmente em saber seu nome.

ontem eu fui à maternidade, para o nascimento do meu segundo filho. estacionei o carro e coloquei um cartão de zona azul. como os exames estavam demorando, gastei todos meus cartões e precisei comprar mais. entrei na banca de jornais e eles haviam se acabado. no café idem. acho que aquele senhor ali da esquina tem, sugeriu a do café.

carrinho de sorvete, nestlé, colete azul e o mesmo sorriso franco sem nome. aproximei-me, pedi o cartão de zona azul e quase fui embora sem me apresentar. não me reconheceu. a barba. peguei o troco e disse que havia estudado na jacurici por doze anos. para onde ele havia se mudado depois da demolição do prédio? fui para o prédio novo, diz ele, bigodes mais brancos. conta que trabalhava ali antes de o prédio ser do pueri domus, quando ainda era liceu eduardo prado. estava ali desde 1959. agora estava de manhã na nova unidade, na rua itacema, pelas manhãs e à tarde marcava ponto em outro colégio, ali perto da maternidade.

quase me despeço, me viro e pergunto seu nome, sem graça, quase me desculpando pelo colégio todo. ele sorriu um sorriso meio de quem não entendeu, pensou bem e respondeu: medeiros.

pego minha zona azul e saio com gosto de colégio na boca mesmo sem ter comprado chiclete.

questão de gosto

bom gosto é relativo.
mal gosto é absoluto.

inocência e malicia

inocência é o que se descobre quando se perde.
malícia é o que se descobre só quando se ganha.

14/05/2008

anjo exterminador

Contei aos alunos ontem a história da libertação do povo judeu do Egito, com as terríveis pragas. Doenças, rios de sangue, rãs por toda parte, nuvens de moscas, mosquitos, gafanhotos, trevas, úlceras pelos corpos dos egípcios, morte dos rebanhos e finalmente o terrível anjo exterminador, encarregado de matar os primogênitos das famílias dos egípcios. Imagens bastante fortes para os alunos de nove anos e para qualquer um. Hoje fomos fazer os desenhos da história e pedi que eles desenhassem cada um uma praga. Não precisa dizer que a maioria optou pelo anjo da morte. Quando estavam todos quietos desenhando, ouço um comentário: olha só meu anjo exterminador tem um gorrinho! E todos caem na gargalhada. Depois da classe recomposta, ouço outro comentário: olha só, o anjo exterminador do Lucas parece uma fadinha cintilante! Outro estrondo de risadas e todos levantando para ver o meigo anjo da morte do Lucas.